LICANTROPIA SERTANEJA
"(...) Em Portugal
o lobisomem é o filho que nasce depois de uma série de sete filhas. Em geral
fica pálido, doente, tristonho, cheio de manias, quase sempre geófago contumaz.
Encontrando o lugar onde os animais se espolinham, o predestinado se espoja e
“vira” lobisomem. Isto às terças ou sextas-feiras. Sob a pele do fenômeno, terá
de correr as sete partidas do mundo, sete adros, sete vilas, sete outeiros,
sete encruzilhadas. Ao terceiro cantar do galo retoma a forma humana. É de
notar o uso de um número que a astrológica caldaica tornou fatídico – o 7. Para
desencantá-lo é mister o signo de Salomão, a estrela de dois triângulos.
Vendo-a, perde o veso das correrias. Podem matá-lo também. Invulnerável a tiro,
é sensível a qualquer ferro aguçado. Quem manchar-se no sangue do lobisomem,
herda o hábito.
Para o
Sertão o lobisomem está fixado em dois modos: como castigo e como moléstia. A
reminiscência de Licaon é patente no primeiro caso. Júpiter, pai dos homens,
castigou um filho espúrio, fazendo-o lobo. O mau filho é candidato a lobisomem.
O “doente” é pessoa apontada comumente. Magro, descarnado, vacilante, de olhos
apagados e face decaída, o licantropo sertanejo é um tipo vulgar de opipalo,
uma vítima da verminose, mais filho do helminto que de Belzebu. Em casos
especiais, o malefício se opera determinado por uma lei de punição suprema.
É o raríssimo
incesto. O incestuoso ou seu descendente mais próximo, será lobisomem. Semelha
à manceba do vigário que é a “Burrinha de Padre”, trotando pelos descampados,
se, por funesto acaso o pároco esqueceu de amaldiçoá-la antes de celebrar
missa.
O cerimonial
para ser-se lobisomem é simples. Na noite da quinta para a sexta-feira, antes
das 11 horas, o futuro loup-garou matuto dirige-se ao local onde os animais se
espojam. Quase sempre na encruzilhada existe o capim machucado e revolto pelos
irracionais preguiçando. Depois de despir-se, põe a roupa pelo avesso, dá sete
nós na camisa e rola da esquerda para a direita, reunindo os pés e as mãos. Daí
em diante, como na história de Petrônio, lupus factus est, ululare coepit, et
in silvas fugit.
Até o
terceiro cantar do galo, o lobisomem galopa e rincha, berra e foge, espalhando
terror. Ataca os caminhantes solitários para sugar-lhes o sangue. Vendo duas
pessoas, esconde-se. Picando-o à faca, “quebram” o fado por aquela noite. É
vulnerável a tiro. Some-se ouvindo o canto do galo. O galo, em todas as
histórias e lendas sertanejas, é o libertador do medo, o vencedor das trevas,
augúrio do Sol, arauto do dia longínquo. Não há fantasma ou alma penada que
resista a seu canto sonoro. Curioso é lembrar-se que Apolônio de Tiana evocou a
sombra de Aquiles e esta desapareceu após o galo ter cantado. Quando a coruja,
o mocho e o corvo servem de emblemas às bruxarias e maldades, o galo é o
símbolo da alegria, das forças sadias e votadas ao Bem. É ele, ancestralmente,
o inimigo do Demônio.
Ferunt,
vagantes Daemonas
Laetos
tenebris noctium,
Gallo
canente exterritos
Sparsim
temere, et cedere.
Cantava o
poeta Prudêncio, já cristão e amável louvador do ilustre galináceo. De um
antiquíssimo canto que fazia parte da liturgia na diocese de Salisbury, havia
estrofes cheias de amizade e carinho, onde se destacava esta afirmativa:
Gallo
canante spes redit.
Acresce aos
atributos divinos do Galo, além de fazer reaparecer a esperança, a honra de ter
sido a primeira ave a anunciar o nascimento de Jesus. Cristo nasceu! É o canto
dos galos na noite de Natal.
Com o
estridor sonoro de seu grito, o lobisomem grune e rosna, mas, receia e foge.
Todos
aqueles que anotaram a vida sertaneja, dedicam largas páginas ao Lobisomem.
Henry Koster registrou-o em sua viagem de Recife a Camocim. Gustavo Barroso, um
dos verdadeiros conhecedores do Sertão, ilustre e consciente folclorista, narra
uma história ouvida por mim vezes diversas.
Um casal ia
visitar um amigo que morava distante. Atravessando uma capoeira, o marido
pretextou ligeira necessidade e meteu-se pelo mato. Daí a minutos a mulher era
assaltada por um animal furioso. Defendendo-se, sacudiu o xale de lã vermelha
na goela da fera e fugiu, trepando numa árvore. O bicho sumiu-se. No outro dia,
a mulher, reparando na dentadura do marido que dormia ressupino, encontrou nos
dentes, as felpas do xale vermelho: o marido era o lobisomem. O monstro não
respeita rezas nem invocações aos Santos. Antonio Ferreira, morador em Estivas,
teve uma luta com um lobisomem durante duas horas. Gritou pelo Céu inteiro,
tentando ferir o bicho à faca. Pela madrugada, semiexausto, pode segurar um
galho de aroeira e salvar-se. A velha Victoria Maria, pernoitando numa casinha
entre Timbó e Curral de Baixo, município de Ceará-Mirim, teve ocasião de
assistir um encantamento, pondo fim ao bruxedo com um pequeno golpe de
machadinha no braço do pseudo fantasma.
Uma das
mais extraordinárias histórias é a do vaqueiro José Francisco de Paula na
Fazenda São Tomé, em Santa Cruz, largamente conhecida pelos comboieiros e
traficantes de algodão e sal. Sob o alpendrado, rara seria a noite em que,
cinco ou seis vaqueiros e mascateantes, não dormissem, contando, à ceia,
aventuras e viagens.
Numa noite
em que estava o casal sozinho, ouviu-se o latido desenfreado dos grandes cães
de caça que José Francisco possuía. Não prestou atenção. Em cada semana, da
quinta para sexta-feira, os cães “acuavam” barulhosamente. Finalmente o
vaqueiro entreabriu, altas horas, a janela e viu passar, seguido pelos
cachorros enfurecidos, um animal corpulento, meio-baixo, roncando e batendo
insistentemente as largas orelhas de perro.
Daí a dias,
um comboio pernoitou na latada. Narraram-se assombramentos e caçadas. José
Francisco historiou o caso. Um do grupo, adoidado e façanheiro, bateu na
coronha do bacamarte, jurando morte ao monstrengo assustador. Veio a treva. Ao
nascer da lua, pelas proximidades da meia-noite, ouviram o tonitroar dos cães e
a marcha resfolegada de um bicho correndo. Aperraram as armas. De gatilho
alçado, esperaram. De repente o abantesma surgiu. Estalaram as espoletas e uma
descarga relampejou num estrondo pelo pátio deserto e mudo. O animal, num
ronquejo horrendo, caiu pela barranca do rio já seco no verão escaldante que se
iniciava.
Correram
para lá. Era um lobisomem. Ferido de morte, não se desanimalizara inteiramente.
Da cintura para cima, era um homem moreno, forte, de nariz aprumado, mãos
delicadas, cabeleira castanha, encaracolada, um desses mestiços de família,
criados na ociosidade das vilas sertanejas: da cintura para baixo, semelhava um
porco, sarrudo, cheio de lama e de garranchos, os cascos firmemente cravados na
areia frouxa do rio. Enterraram-no ali mesmo. José Francisco de Paula mudou-se
para Estivas onde morreu anos depois, sem nunca esquecer a noite da caçada
impressionante e trágica.
Francisco
Teixeira, Seo Nô, por muito tempo nosso guarda num sítio, reproduziu,
inconscientemente, a narrativa de Niceros, no Satiricon petroniano. Trabalhando
num engenho de açúcar, Nô passava o serão levando em descrédito as aparições e
bruxarias comentadas pelos companheiros. Um deles, João Severino, meio zangado,
declarou-lhe que, em breve tempo, se arrependeria de zombar dos lobisomens. Os
colegas do eito foram explicando ao Nô que ele andasse armado e não fosse muito
longe das casas.
Uma noite
atravessando uma varjota, Nô encontrou-se com um bezerro grande, todo negro e
peludo que se precipitou num salto sobre ele. Nô bateu mão da faca e lutou
deveras. Sentindo-se cansado, sacudiu uma facada bem dirigida, apanhando o
agressor no pescoço. Este, grunhindo, correu. Pela manhã, não vendo João
Severino entre os habituais cortadores de cana, inquiriu e veio a saber que ele
estava doente. Correndo até a casa, encontrou-o de nuca amarrada e bebendo
mezinhas. Estava com um corte no pescoço. Se Nô soubesse latim teria citado
Petrônio: intellexi illum versipellem esse.
Os
milheiros de histórias de lobisomens são quase iguais. É sempre o animal
atacando ou fugindo com uma picadela de mais. O antídoto é o “sino saimão”,
“sino salamão” ou sinal de Salomão, a cruz feita em dois triângulos, com a
palha santa no domingo de Ramos. Põe-na no lugar dos encantamentos. Vendo-a, o
versipelio nunca mais beiradeja córregos e bufa, aos trancos, por descampados e
várzeas. Se esconderem a roupa, ficará sempiternamente lobisomem.
Acredito
que essas superstições, de cunho rigidamente moral, tenham sido postas em
circulação pelos letrados, como elemento de ordem ética, equilibrando para uma
melhor conduta, a gente semi-bárbara do Sertão.
O medo ao
sobrenatural, o castigo após a morte, a vastidão das penas, o tempo sem fim do
remorso, são, através das idades, bases naturais das religiões. Seria inútil
mostrar de como a Igreja Católica soube inteligentemente popularizar os seus
dogmas, usando lendas cultuadas desde a mais remota ancianidade.
Os Neuros
de Heródoto e Pomponius Mela, os homens-serpentes dos Vedas, são
necessariamente utilizados como persuasão e terror. Aqui já se não dá o
auto-milagre dos Neuros. O lobisomem é castigo, uma penalidade infamante e
arriscada a morte certa. Por isso, talvez, o elemento letrado, indicando maior
tendência à moralização dos costumes, não obstou a propagação da crendice,
ajudando-a, antes, porque ela expressava um meio idêntico, com maior eficácia.
Dá-se como ultrajante e hórrida, sorte a deste animal vagabundo semipoderoso e
semifrágil. Para atemorizar o sertanejo se fez mister uma pena, prolongada após
a morte. Sem temer a lei, zombando da força e habituado às batalhas dos
elementos, o sertanejo, sub-raça que se adaptara a todos os climas, necessitava
desta ambiação mítica, pressão à sua luxúria porejante, à sua avareza latente,
ao seu temperamento irrequieto, dentro de aparente insensibilidade.
Estranho,
misterioso, surgindo do intricado negro dos juremais, saltando, inopinado, da
sombra escura das faveleiras e cardeiros esguios, correndo pelo ondulado
relvoso das pradarias, o lobisomem, pecado vivo, dentro da grande noite
supersticiosa, mantém sempre acesa a perene formação de assombros.
Agora que
estamos tentando possuir uma literatura brasileira, sem o estreito regionalismo
e pondo na Arte o mundo poliforme das esperanças nativas, o folclore sertanejo
terá um papel eficiente e decisivo fixando a fisionomia espiritual do Povo, nas
suas manifestações de crença, atitude ancestralmente definidora da moral
coletiva em face duma geração que interroga e analisa.
É o coração
humano, inquieto e palpitando em presença do susto, do sobrenatural e do
inexplicável.
Sob a
jaqueta de lã do Bretão ou na gibona de couro do vaqueiro, o pavor é idêntico,
vendo, debaixo das oiticicas imensas ou na penumbra dos menhirs batidos pelo
luar, a figura ligeira e negra, impressionadora e terrível do loup-garou, do
lobisomem, capelobo dos índios, erudito versipellio, herança atávica do medo na
alma triste dos homens..."
Por: Luís
da Câmara Cascudo
Fonte:
Revista do Brasil, São Paulo, Ano VIII, n. 94 p. 129-133, out. 1923.
Acervo do
Instituto Câmara Cascudo – Ludovicus
(Xilogravura retirada do fotolog de Airton Cardim)
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